A pintura do quarto do silêncio

Sua figura é lírica e transparente, talvez levemente diáfana. Seus tons são de azul e verde — mas são cores percebidas como percebemos a luz da manhã. Acorda, os olhos confusos, o cabelo no rosto. Ela está nua e o corpo flutua nos lençóis brancos. É como se pairasse, como se não pudesse encostar na superfície dos móveis. Ela pede, então, com o sobrolho, que se feche a janela. O dia a faz triste. Tem os movimentos suaves de angústia dos pesadelos vívidos. É tudo silêncio senão pelo som dos passos daquele que fecha a janela — o leve gemido da madeira, um trinco preguiçoso e as cortinas suspirosas. A mão que toca as cortinas quase não as diferencia do contato com os cabelos da criatura. Os dedos sentem os fios, quase etéreos, irreais. Ela sorri um sorriso tímido e se afunda mais na cama, o rosto entre os travesseiros. Coluna, omoplatas, os ossos se destacam até as ancas. Bracinhos idílicos puxam uma colcha e, feito um pequeno animal, o corpo se enrosca e se aninha por debaixo dos lençóis.

A mão não sabe se deve atravessar aqueles tons tão frágeis – a luz fria da manhã, a melancolia no piso de madeira, o odor do café e banho quentes. É uma figura triste. Os atores se movimentam vagarosamente, na espera de um artista que possa capturá-los, torná-los eternos a carvão e óleo. Sentem que esses instantes se eternizam em algum ponto do universo. A mão tem medo de que, em um movimento insensato, tudo se evapore e suma com o rastro da manhã. Para sempre e nunca mais eram um só. E na calma jaz uma angústia que grita e acalenta o silêncio. A figura na cama é morta e viva e a mão em pé é morta e viva — poderiam estar mortas. No silêncio há luxúria, os pontos apagadiços do desejo, tons pálidos de perversidade e obsessão.

A mão pertence a um homem e o dono dessa mão puxa os lençóis. O corpo resmunga. Tons verdes, roxos e azuis transparentes no branco da pele arrepiada. Ele segue o curso do máximo de veias que pode, cada artéria, os pulsos, a respiração que eleva e afunda naquele corpo entregue em si. Cílios longos se embaraçam nas pálpebras semicerradas. As sardas espalhadas nas bochechas, na lateral do rosto, quase imperceptíveis. A linha estreita, que vai do pescoço ao fim do tronco, separa dois seios estrábicos. De negro há os pelos, quase invisíveis ao longo do corpo, mais espessos no topo da cabeça, naquilo que se esconde entre suas pernas, viradas de lado. A linha dos quadris passa das nádegas magras para coxas tímidas em que se vislumbram finas linhas brancas. Pernas, pés, unhas curtas parcialmente pintadas. Mais um resmungo, o corpo estremece e se encolhe. A mão toca uma escápula e há mais um resmungo e a boca seca sorri um sorriso mínimo, contido.

Ele não vê, mas pode visualizar seus dentes irregulares e olhos escuros. Pode avaliar cada dente numa contagem imaginária. Ela também poderia contar seus dentes, aquela figura que, esforçando-se um pouco, deixaria de existir. Os pés e as mãos também são pálidos, exânimes. Aquilo um dia vibrou? Aquilo um dia preencheu o ambiente, senão com cores frias, com desalento? Choro, gritos. Tudo parece distante. Além do quarto, do pintor pairante, daqueles dois corpos, o que existe? O ambiente é preenchido por fragmentos de um e de outro numa luta de tomar e ceder. É uma luta injusta, pois é em sua coreografia de homem que se dá e cede, e ela quase sempre com os segundos passos — e, tomando ou cedendo, os sentimentos sufocam-se em lágrimas quentes, em suor gélido, em saliva — e em explosões multicores. Os sabores, as cores, os sons, tudo parece se construir e desfazer. A culpa atolada em tantos pontos de tempo perdido, que escorrem e agitam, se acumulam e dispersam.

Ambos pressentem que ela não existe. É uma ninfa, uma assombração de si, uma menina, uma coisa, algo que está e não está, que se faz e desfaz. Não há respostas. É a mão, esse braço, suas articulações, isso que se forma, isso que pode formar e desfigurar. Nos distanciamos por um momento. Quem é quem naquele quarto, o pintor sabe? Suas figuras se metamorfoseiam, amorfas, fluidas. Um se estende na persona do outro. A figura do homem é a sombra que se alonga e se apropria da figura da criatura sem nome — mas quem é aquela sombra?

Ela não tem nome, o pintor sabe? O pintor-espectro pinta com vagarosidade, o pincel, a mistura de tintas, sua poesia, com suavidade, em cores. Os olhos do pintor nadam. As lágrimas escorrem também em silêncio. Para quem ele chora, indaga-se o escritor.

Mas isso pode ser imaginação dela. Ou talvez dele. Difícil diferenciar um do outro. Talvez ela não pense nisso. Talvez ele perceba claramente sua individualidade. Já ela não pode. Não sabe quem é dentro de si, o que faz parte de si ou dele. Ele é nódoa e se expande, ocultando-a. Alguém terá de acreditar nela ou nele, mas no silêncio não há em quem acreditar. Em que medida são além de si mesmos. A omissão do que são a sufoca. Em que medida precisam ser além de si mesmos. É ser para os outros esse estar no mundo? Ele não se indaga acerca dessas questões.

O pintor chora ao trabalhar com a amorfia das cores frias do quarto branco, com a nudez daquele ser, com o rosto desalentador da menina translúcida. O escritor chora por não saber quem é quem, por trabalhar com a individualidade. O escritor chora pelo pintor. A ninfa, se pudesse chorar, choraria por ser. Ninguém sabe se ela realmente é. Talvez o homem saiba, mas seu rosto é indecifrável. Ele tece sua própria imagem do que eles são. Ela cria suas próprias cores com os olhos bem cerrados de cílios embaraçados. E essas criações não conversam, cada uma em seu silêncio. Sofrem pelo desconhecimento e pela solidão. Aquele instante se estende em todas as direções.


Esse texto foi escrito em 2017 e publicado originalmente na Revista Philos. Aqui ele aparece com modificações pontuais do original que você encontra no link.

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