TUDO AINDA INTOLERÁVEL

Laurie Kaplowitz

O dia é quente amarelo em uma praça quente e cinza. O telefone firme apesar da mão em descompasso. Os lábios tensionados enquanto observa a movimentação na rua e tenta ouvir com atenção o que ele diz: estou tendo uma vida de trabalhador normal.

O coração afunda no mediastino, esvai-se e degenera entre os outros órgãos, grotesca massa amorfa. Os olhos ardem. Ela conhece aquela voz, que soa mais grave ao telefone. Aquele som a paralisa. Ao ouvi-lo, ela pode ver seus lábios se movendo do outro lado, seus dentes, sua gengiva e sua língua. Pode também sentir seu hálito. Por favor, eco cintilante, você pode falar comigo?

Acho que é a sua vez de falar, murmura uma vozinha lá no fundo da cabeça. Esforça-se. Acho que não deveríamos conversar mais, diz. Tudo parece intolerável. Tudo patético e humilhante. Por favor, me deixe falar com você uma última vez. Só isso. Uma conversa. Só quero saber como você está. Eu gosto de você, me preocupo com você. E todo esse tempo

Silêncio.

Olha a rua, os carros, as pessoas, as luzes, os sons. Um rapaz dorme em frente ao Banco do Brasil sobre um pedaço de papelão. Uma mulher passeia com um carrinho de bebê. Um homem grita ao telefone. Observa sua mão direita e a cicatriz no punho. De novo, olha para os carros, dos carros para as pessoas, e destas para aquelas. Mendigos, loucos, maltrapilhos, doentes, esquecidos. Um idoso passa com um cachorro. Quando criança, implorou aos pais para ganhar um irmão. Acreditava que uma criança rechonchuda seria a resposta para o estranho vazio que a acompanhava. Também quis ter um cachorro. Hoje em dia tem horror tanto de crianças quanto de cães. Certa agressividade passiva que não pode controlar.

Vai até uma loja de doces, compra dois bombons e os guarda na bolsa. Gesto estranhamente nostálgico, como quando comprava charutos de chocolate na hora do almoço. De resto, não sabe. Tudo se passa em flashes, luzes e movimentações em sua memória. Ela é, em relação a si mesma, uma observadora. As pessoas não passam de pedaços de pessoas e as coisas, pedaços de coisas. O dia é quente amarelo. Há um rapaz deitado em um colchão ordinário em frente ao banco do Brasil. Uma mulher e o bebê. Um homem furibundo ao telefone. Um velho e seu cachorro. Ela no carro.

Como?

ela no carro.

Sentada no carona do carro.

Entrega um bombom a ele e come o outro. Ele agradece. Ela fica calada e come o bombom. Tem gosto de vazio. Uma ansiedade sem nome embrulha o ventre, o peito, as costelas. Ela olha para frente. Você quer fazer alguma coisa, o homem pergunta, sem comer o chocolate. Como você está, você não me respondeu direito ao telefone. Eu vim na hora que você…coloca essa mochila aqui, não precisa ficar com ela no colo.

[As incursões muitas vezes rápidas e furiosas pelo seu corpo. Os olhos aguados que a perseguiam, sérios e intensos. Quantas e quantas vezes seu olhar ferino e repleto de desejo e de Desconhecimento não a perseguiram. A forma como ele implorava que ela fizesse a sua vontade. A risada sarcástica. Os tapas nas mãos e nas pernas. Ele a olhava como se ela fosse um bichinho. A força e a brutalidade que ele usava contra o seu corpo.]

Coloca essa mochila aqui, não precisa ficar com ela no colo. Ele sorri. O sorriso é de menino. Suas gengivas aparecem. Os dentes são relativamente corretos, mas peculiares. Estranhos, mas atraentes. Os caninos pontudos, um pouco amarelados. As rugas do rosto quando sorri. Estou com tantas saudades, ele diz. Por que você está com essa carinha tão séria. Sem a mochila no colo, ele olha para as suas pernas. Ela pressente que ele colocará a mão em sua coxa, o fantasma do movimento em seu cotovelo. Mas ele não o faz e volta a se recostar no banco do motorista. Continua a fitá-la. Fala comigo, ele pede. Está tudo bem. Está normal, ela responde. E completa: pensei que você tivesse se esquecido de mim. Ele suspira. Se eu te liguei tantas vezes. Mas eu penso, ela diz, que se eu não atender mais um dia você se esquecerá de mim. Ele esboça um sorriso.

[Ele beijou seu rosto, suas orelhas, sua testa, seu queixo, seus olhos, seu pescoço, toda a dimensão do seu corpo frágil que se dissolvia sob o seu. Você encontrou outro Eu? Ele perguntou. Não há ninguém como você, ela respondeu com sinceridade. Você me promete? Promete? Ela prometeu. Qualquer coisa que você precisar, qualquer coisa, você me procura, você me pede, tudo bem, meu amor? Eu não aguento isso, ela disse. Quero te ver sempre. Então vamos nos ver sempre. Mas eu quero te ver todos os dias. Então vamos nos ver todos os dias. Ela sabia que não podiam e chorou um pranto silencioso e convulsivo que manchou o travesseiro. Ela chorou quando ele dormiu. Chorou por muitas horas, virada de costas, a boca escancarada.]

Ele esboça um sorriso. Segura o volante por um instante. Vem aqui, ele pede. Vem aqui me dar um abraço. Eles se abraçam entre os dois bancos. O homem afunda o nariz no pescoço da menina e aspira seu aroma, apertando-a com força contra si. O corpo dela estremece, mas o rosto está sério, tensionado. De amor e de mágoa. Ela sente os lábios dele encostarem em seu pescoço, entre suas clavículas, perto dos seios. Procura sua boca, mas ela se afasta. Ele segura seu rosto com uma das mãos. O olhar é sério, penetrante e confuso. Os olhos se indagam o que é aquilo disposto diante de si. Ela se obriga a olhá-lo, o esforço esgotando-a. As sobrancelhas, o fundo da esclera. Ela o ama e não pode suportá-lo. Diz, por fim: eu me sinto uma idiota, estou cansada. Não, não. Vem aqui. Ele a segura pelos braços e ela puxa o corpo para longe. Você quer que eu te leve para outro lugar, olha, meu amor, vem aqui, vem aqui comigo. Não faz isso, vem aqui. Ela se deixa recostar no peito dele. Eu me sinto tão idiota, ela diz. Não, você não é idiota. Você não é, não diz isso. Eu quero você, não diz… Eu não aguento mais, ela o interrompe. Shiiiiu, não. Os olhos dela mergulham em água salgada. De lado, ela está deitada em seu colo. Olham o rosto um do outro. Ela faz carinho em seu rosto. Você pintou a barba? Ela pergunta, a voz embargada. Ele ri e a beija sofregamente. Lágrimas escorrem dos olhos dela e invadem seus beijos. Com sofreguidão, eles sorvem um ao outro. O peito dói, o coração afunda, a caixa torácica vibra. São cenas de perfeito vazio. Cores dispersas, rosa bebê, sombras, sinestesia, o gosto de nicotina, o cheiro adocicado, saliva.  Desvencilha-se do homem, voltando ao banco do carona. É como arrancar uma rosa e despedaçá-la.

Ele se remexe no banco do motorista, passando as costas das mãos nos lábios. Pontos de realidade. Você se divertiu nesse tempo sem mim? Ela o encara de volta. Não, não muito. O que você fez? Nada. Nada? Não. Nada? Saí com um menino. Você gostou? Ele não era você. Vocês transaram? Foi só um beijo. Ele tocou em você? Para com isso. Eu só me preocupo com você. Você tem ciúmes. A voz dele contém certa raiva aflita: eu não tenho ciúmes de você. Eu só…esses meninos…fala o que vocês fizeram! Ele segura seu braço. Não, ela responde. Não foi nada, eu já disse. Ele não é você.

Silêncio. O sol desponta levemente no horizonte. Ela olha para o rádio do carro. Espera a raiva. Espera que uma melodia comece a tocar. Espera que a morte atinja aquele carro, aquela rua, aquela cidade. Uma mariposa preta, pequenina, perpassa veloz, voando baixo, perto de um canteiro. Prelúdio de morte. Ele diz: é tudo tão banalizado hoje em dia. Tudo. A voz arrastada, teatral. Ela sente vergonha. Ele continua: O sexo é tão banalizado. Eu só não queria…ele passa as palmas das mãos nos olhos, gesto de quem acabou de acordar. Passa os dedos nos cabelos. Os fios prateados nos cabelos predominantemente castanhos. A situação é ridícula, insuportável. Ela abre o porta-luvas. Há um pacote de balas e um maço de cigarros. Sorri e os olhos se enchem d´água. Agora o dia desbota feito os galhos de árvore vistos da janela de um carro, da sombra. Agora é cheiro de suor e saliva, cheiro de perfume, de cigarro, de café e de hortelã. Não consegue ver as horas no rádio do carro. Não consegue descobrir o que foi feito do seu celular. Está aprisionada dentro de si com aquele homem. Parece estar dentro dele. Quase pode ser ele. A mariposa negra some. O carro se movimenta. Ele diz alguma coisa. Talvez o carro estivesse parado. Seus pensamentos não a permitem estar propriamente em lugar algum. Agora o tempo está suspenso.

No fim, é tudo sobre o tempo.

A mão dele em sua coxa. Eu não quero que isso se banalize para você. Você acha que eu fiz ser banal? Não, ela responde. Não sabe do que ele fala. Uma vontade aguda começa a pinicá-la por dentro e vê que a ferida coça já faz tempo sem que tenha lhe dado vazão. Seu corpinho, ele diz, o desejo comprimido entre os dentes. O desejo a assusta. Coça e pinica por dentro. A mão do homem. Lembra-se da sensação do outro e de como não podia sentir nada. Um medo súbito. Pega em sua mão. Ele diz: suas mãos são geladas. Ela aperta sua mão com toda força de quando ainda era muito criança, de quando tinha ainda muito medo. Ela aperta sua mão e crava suas unhas nela. Ele não faz esboço. Deixa que a menina crave as unhas e marque suas mãos, que arranque o mais ordinário do epitélio do seu corpo. Crava as unhas com mais força e ouve um leve soar de dor. Ele tenta tirar a mão. Ela para. Sorri, satisfeita. Acaricia os pelos do seu antebraço, observa as marcas de unha nas costas da mão. Volta a observar a janela do carro.

O tempo, é o tempo que importa.

Ele olha para as costas da própria mão, com pequenas e insistentes marcas curvas. Diz: nunca precisamos de promessas. Você mente, ela responde. Certa vez prometi que nunca arranjaria alguém como você. Não arranjei. Ele diz: mas você me trai. Não te traio. Não estamos juntos. Ela continua: nunca estivemos. Você tem razão, ele responde. Estou cansado. Não sei por que você estaria comigo, sou um velho. Não sei por que você se isola do jeito que você se isola. Não gosto muito de conversar. Pois deveria. Pensei que você iria dar ataques por conta do que fiz. Ele olhou a mão mais uma vez. Soltou o ar com a boca, dando uma risada sarcástica. Não me importo com essas coisas bobas que você faz. Você faz porque tem ódio de mim. Ele fica sério, fitando-a. Não queria que você me odiasse. Você não gosta de mim? eu quero tanto você. Ela evita encará-lo. E, de repente, sente-se exausta. Quase exasperada. Quer se deitar. Ficar deitada por um tempo incalculável de minutos. Ela diz: quero ficar deitada por muito tempo. Sinto que posso ficar deitada por vidas inteiras. Ele responde: a vida é relativa. Há seres vivos que vivem muito pouco. Os insetos, por exemplo. Você pode deitar uma hora e pode estar deitada por uma vida inteira. Eu não sei o que seria capaz de te prometer agora para deitar uma vida com você. As palavras são quase vivas e se expandem entre os dois, desfazendo-se, entretanto, no ar. Morrem, como pássaros atingidos. Ao vê-las morrer, consente que eles possam ir. Eles devem ir.

Não há outra maneira. Mais uma vida que finda.

[Sonho: Ela estava de vestido sem forma e sandálias pretas de tiras. A madrugada era silenciosa e bonita. O céu – pontos de luz no escuro. Distinguiu suas sandálias. É intensa a vontade de chorar, sentia-se sozinha. Logo, logo ela iria para casa.]

A raiva. Há um ódio inesgotável que invade o amor que se faz entre os dois. Uma destruição, a própria morte. Ela vê a raiva invadir os movimentos do homem e ser o próprio homem. Ela também sente raiva. Quer destruí-los, a ele e a ela. Seus corpos se entrelaçam numa luta furiosa. A raiva escorre dos corpos na medida em que o suor, o cansaço, o gozo ganham forma. Esgar.

Depois do ódio, há a ternura. Ela se encolhe. Ele enlaça seu corpo desfeito. Por que temos de chafurdar nesse lodo, ele pergunta, para si. O remorso. Para ela, só há o travesseiro, a roupa de cama. Ela olha fixo. Aquilo é importante. Olhar. Olhar para o branco fixo do branco fixo do lençol. Ela quer dizer que a vida é uma repetição daqueles lençóis. Que a vida se repete em suas imundícies. Que ela está presa nessa alegoria incestuosa. Não pensa em nada daquilo. Está deslocada de si mesma. Aos poucos, o branco do lençol vai se tornando menos branco e o espaço vai se tornando menos pedaços de espaço e mais espaços em si. Mas, ainda pedaços, ainda difuso e disforme.

Ele fala. Ele pede para que ela se deite com ele. Ela se deita em seu peito. Ele pergunta como está a vida. Ela diz. Ele pergunta detalhes diversos. Ela responde todos os detalhes. Ele fala mais. Ele ri. Ele beija seus dedos e seu ombro. Ele continua a dizer. Ele fala sobre sua própria vida. Ela escuta. Ela é um anexo daquela singularidade, daquele amor. Ela só pode observar aquilo que ele é. Só consegue se limitar a estar. Ela pergunta e ele fala. Diz como se dissesse numa aula, com calma. Ela pede que ele fale do trabalho. Ele fala. Ela gosta de como ele gosta da classe a que pertence. Ele diz tenho orgulho dessa classe que muito tem a contribuir. Ele diz da família. Ela ouve. Eles riem, fingindo não saber que ela não faz parte dessa família e que isso a fere. Ele finge que ela não é essa filha que ele cria, surrupiada e às escondidas. Talvez não surrupiada, surrupiada de quem? Achada, simplesmente. Ela gosta de como as palavras soam naturais em sua boca. Como fazem parte dele. Ela gosta quando ele fala, precipuamente. E, apesar disso, em um recôndito da mente, sabe que o despreza, que não admira a pessoa que ele é, de maneira alguma. Apenas não pode admitir essa verdade para si. Tornaria tudo mais difícil.

No silêncio há certa melancolia com a qual ela não pode lidar. É um sentimento novo naquele homem que não entende. Um tédio terrível diante da própria vida. Eles compartilham o tédio de terem de viver a vida.

A conversa mingua. As palavras se esvaem para debaixo da cama. Há um ranger constante em algum lugar. Ele diz: vou colocar uma música para tocar. Ela pede que ele não o faça. Quero fazer parte desse silêncio. Ele não compreende. Na realidade, tanto fazia tocar ou não uma música, tanto fazia o ranger de mola, os carros lá fora, um estrondo, uma explosão, a trégua na morte do mundo. O silêncio dentro dela não poderia ser rompido. Esse silêncio independia de qualquer som que se fizesse no exterior. Ela quer pedir que ele ponha a música que desejar, mas é esforço tremendo tentar se pronunciar agora. Todo esse silêncio que faz parte de si e que a engolfa.

[Deitados na cama, enquanto ele já dormia a sono solto, ela observou, por baixo das cobertas, sua própria figura. Será que haveria alguma mudança visível nele. E se olhassem para ela a partir dali e pudessem ver o que foi feito. Mas, ela sorriu. Estava feliz. Esteve feliz também enquanto ele experimentava seu corpo e ela provava daquele Desconhecimento. Estava feliz. Pensou: sou feita para isso. Sou feita para isso e era verdade tão reta. Era feita para amar outro corpo e receber amor desse corpo, era feita para o entrelaçamento, para como sua visão se turvava, para aquelas sensações tão peculiares, tão naturais e suas. Aquele era o segredo. Esse é nosso segredo, meu e seu, pensou. Olhou para o homem que dormia. Era um corpo tão bonito que a emocionou. Era um corpo que ela amava e amaria sempre, mais do que qualquer conjunto de células.]

É todo esse silêncio que faz parte de si e que a engolfa. Água. É inevitável que chore. Se não for agora, será depois. Prefere que ele não veja aquelas lágrimas mais uma vez. Aquele choro brando que é capaz de lembrá-lo do monstro que mora dentro de si. Ele desiste da música. Coloca o braço esquerdo atrás da cabeça e com a mão direita acaricia o lóbulo dela. Ela respira seu odor de homem. Ao lado daquele homem é sempre criança rompida, não importa quando, quantas vezes. Lembra-se do rapaz com quem saiu. Sorri ao saber que pode feri-lo. Ela sabe ferir.


Esse texto foi escrito em 2016. Fazia parte de um livro que nunca chegou a ser e que leva o mesmo título. Depois, em algum momento de 2018, essa história foi reformulada e virou O Diálogo, meu livro de estreia. Existe uma mesma menina, um mesmo homem que aqui permanece sem nome. Um mesmo universo, que se repetiu e se repete ainda, muitas vezes, na história do mundo. Pensei muito antes de publicá-la, mas aqui está.

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