Canibalismo (só para crianças)

Vou bater a máquina, porque de vez em quando pego horror ao computador. Estive pensando nessa história desde ontem, é assim –

(não existe estilo para o que vou contar)

Aos onze anos, beijei um menino pela primeira vez. Era uma festinha e a sugestão sobrevoou aquelas cabecinhas juvenis. Entre cochichos e segredinhos e confabulações, eu concluí, pragmática, que tudo bem. Descemos até um lugar mais isolado da festa, a boca dele aberta de um jeito pavoroso, e nossas salivas, confusas e inexperientes, se encontraram. Depois subimos. Mais tarde, o menino disse que não queria nada comigo. Assim. Foi tanto o meu constrangimento que mal respondi, numa tentativa última de que a mudez se traduzisse em desdém. Tinha onze anos, mas não era estúpida, e vir falar comigo como se eu esperasse algo além de um beijo era humilhação. Que prepotência. Fui ao banheiro para conter o choro. Tinha onze anos, mas já tinha aprendido a ficar calada e engolir o choro. Era secretamente apaixonada por ele há bastante tempo (para uma menina de onze anos). Fui para casa arrependida, degradada, ofendida e resolvi nunca mais ser simpática com aquele garoto – que era meu amigo até então- e reservar a ele nada mais do que o desprezo.

O pior foi descobrir, logo depois, que duas amigas também eram apaixonadas por ele. Uma me contou por meio de um diário passado da sua carteira para a minha, em uma aula muito monótona de inglês. A outra, não sei como descobri. A amiga do diário continuou sendo minha amiga e logo esqueceu a paixonite. Já a outra, que no fundo nunca gostou muito de mim, me odiou para sempre. Nunca entendi esse ódio. Entendia menos ainda por ela estar começando uma carreira de modelo. Era alta e esbelta, tinha o nariz, a boca, os olhos, os cabelos, todos bem formatos, e unhas longas em mãos longas e magras. Era dessas meninas que mudam muito pouco ao longo da adolescência, que já saem prontas na primeira menstruação. Como uma menina dessas poderia ter raiva de mim? Talvez ela se perguntasse a mesma coisa. Aos onze, eu parecia ter nove, e nada parecia ter acontecido comigo em matéria de puberdade.

Aos doze anos, ainda sem seios, um rapaz de dezenove quis sair comigo. No início achei engaçado e cheguei até mesmo a cogitar aceitar o convite, mas desconversava a cada vez que ele me chamava para um programa que eu, estudante da sétima série do ensino fundamental, jamais poderia ir sozinha. Vinha também o medo dele perceber que eu não tinha seios ou a perplexidade de que ele já sabia disso – minhas fotos no Orkut eram bem óbvias – e não se importasse. Sem ter para onde ir, bloqueei. Nem mesmo lembro o seu nome.

Aos catorze anos, ainda não tinha beijado ninguém além do garoto-paixão-da-minha-amiga-modelo-que-me-odiava. Tinha uma completa aversão aos meninos desde aquela primeira decepção e tinha plena certeza de que meu corpo pouco formado, meu cabelo volumoso, meu rosto estranho e angular eram repugnantes para qualquer pessoa com o mínimo de dignidade, inclusive eu. Olhava para minhas colegas, já com curvas e feições de pequenas mulheres e concluía que alguém, em algum lugar, tinha esquecido de mim. Os hormônios me davam a insegurança dos poros, dos suores e dos odores. O uniforme que me compravam era sempre largo demais. Eu era menor do que todo mundo e não gostava muito de me enturmar. Na nova escola, todo mundo parecia rico demais e sabia coisas demais e eu era só uma fulana que chegou um mês atrasada de um bairro do subúrbio realmente subúrbio.

Certa manhã, saí para ir ao banheiro e um professor beijou meu pescoço e acariciou meus seios – subseios – por debaixo da blusa. Nunca contei para ninguém, mas agora estou velha demais para segredos. Também nunca contei do menino dos meus onze anos, nem do homem dos meus doze. E logo ele percebeu que eu não contaria nada, porque não tinha a quem contar, e a cada dia arrancava um pedacinho da minha carne e comia crua. Foi assim até eu ter dezessete anos, naquela escola.

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